Ach Portugal!
Hans Magnus Enzensberger, poeta, ensaísta, tradutor, escritor e editor alemão, disserta no seu livro "Ach Europa!" (*) sobre sete países europeus, Portugal incluído. Escreve na página 182 e seguinte (numa tradução livre):
«Há muitas assincronias no nosso mundo. Porque é que há apenas linhas isotérmicas e isobáricas? Seria muito mais interessante encontrar linhas em que se poderia ver que zona temporal estaríamos a passar quando viajamos. Linhas que mostrariam as brechas da história. Poder-se-iam chamar "linhas isocrónicas". Vamos supor que o leitor e eu viveríamos de facto no ano de 1986 - um pressuposto audaz! - e iríamos visitar uma pequena cidade perto de Berlim. Talvez nos parecesse que estivéssemos no ano de 1958. Uma colónia no Amazonas podia-se datar como sendo de 1935 e uma mosteiro do Nepal como sendo da época napoleónica. Num mapa assim, grande parte de Portugal seriam ilhas temporais. (…) Em Portugal pode acontecer-lhe ainda hoje que um fornecedor lhe escreva uma carta e que assine com as palavras "Com a maior consideração", "De V. Ex.ª", "Atto. Ven.dor" e "Ob.gdo". Repare também nos relógios. Nos muitos relógios nas torres, nos mercados, nas esquinas das lojas. Eles vêm de uma altura em que o relógio era algo raro, precioso. Apenas farmacêuticos, directores e juízes teriam dinheiro suficiente para ter o seu próprio relógio. Vai verificar que todos estes relógios públicos não estão certos. Melhor dizendo, estão parados. Ninguém lhes dá corda.»
Ontem na SIC, no Jornal da tarde, foi notícia o relógio da Rua Augusta que se encontra parado há alguns anos. Veio-me à memória esta ilha temporal em que vivemos, pela qual passam as tempestades da formação profissional, do choque tecnológico e do Simplex sem que enraizados hábitos sofram um abanão.
* Edições: alemão, inglês, espanhol. Primeira edição: 1987 (alemão).
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