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PÚBLICO 20 anos (4)

O suicídio público do procurador-geral
José Manuel Fernandes - 05-03-2010

imageSem escrutínio pelo Parlamento de todos os documentos relativos ao caso PT-TVI não haverá restabelecimento da confiança
 
Confesso que não compreendo a forma como o procurador-geral da República tem vindo a actuar. E, por não compreender, compilei alguns dos elementos que têm vindo a ser divulgados, assim como as interrogações que eles me suscitam.

O que começo por não compreender é a forma como tem passado quase sem comentários o facto de tudo indicar que, entre os dias 24 e 25 de Junho do ano passado, alguém que estava por dentro das investigações do caso Face Oculta passou aos suspeitos a informação de que tinham os telefones sob escuta. E não compreendo por que o que está em causa é a confiança na magistratura do Ministério Público e no seu principal responsável, ou seja, o que está em causa é a confiança na independência e fiabilidade da magistratura que, em Portugal, tem como missão dirigir a investigação criminal.

Recordemos, pois, o que é do domínio público. No dia 24 de Junho, na Assembleia da República, o primeiro-ministro garantiu que não tinha tido conhecimento prévio do negócio, então quase fechado, entre o PT e a TVI. Nesse mesmo dia, não muito longe dessa mesma Assembleia, no palácio onde funciona a Procuradoria-Geral de República, o procurador-geral foi informado da existência de escutas entre Armando Vara e o primeiro-ministro. Essas escutas existiam não porque um qualquer procurador ou juiz de Aveiro tivessem colocado sob escuta o chefe do Governo, mas porque Armando Vara estava sob suspeita no caso Face Oculta. Porém, na opinião dos magistrados de Aveiro, a associação das escutas onde aparecia o primeiro-ministro e das que estavam a ser feitas aos telemóveis de Vara, Rui Pedro Soares e Paulo Penedos indiciavam a existência de um plano para, através da PT, controlar a TVI e alterar a sua linha editorial. Esse plano configuraria o crime de atentado ao Estado de Direito.

Até 24 de Junho essas suspeitas, tal como o nome dos suspeitos que tinham os telemóveis sob escuta, eram apenas do conhecimento dos magistrados de Aveiro e dos agentes da Judiciária que com eles trabalhavam. A partir de 24 de Junho o círculo dos que as conheciam alargou-se.

Ora o que é grave é que, pouco tempo depois dessa reunião, os inspectores da PJ de Aveiro começaram a notar uma alteração no teor dos telefonemas interceptados, tendo, mais tarde, comprovado que vários suspeitos do caso Face Oculta - que, recorde-se, envolve negócios de sucata e toca várias empresas públicas - estavam a utilizar outros telemóveis com cartões pré-comprados. Mais: nos telemóveis com os números antigos faziam conversas contraditórias com as realizadas nos novos telemóveis, aparentemente para confundir e despistar.

Apesar de decorrer há mais de meio ano um inquérito para saber de onde partiu a fuga de informação, a coincidência entre a reunião na Procuradoria e a alteração do teor das conversas é inquietante. Não porque faça recair exclusivamente sobre a PGR a suspeita, mas porque quem quer que protagonizou a fuga de informação só o fez depois dessa reunião, e não sabemos por que motivos. O que significa que levar informação delicada ao procurador implica um risco que nenhum magistrado hoje consegue avaliar em toda a sua dimensão.



Como se o desconforto causado por esta coincidência não fosse suficiente, a ela somam-se decisões controversas e o comportamento errático de Pinto Monteiro.

O que é que causa desconforto na sua actuação? Primeiro que tudo, o facto de, num dos seus despachos sobre este processo, ter recorrido a escutas posteriores à reunião de 24 de Junho para fundamentar a sua decisão. Como é possível que conversas altamente inverosímeis, contraditórias com outras conversas anteriores e consideradas suspeitas de serem encenadas pelos investigadores no terreno tivessem servido a Pinto Monteiro para sustentar a sua decisão de arquivamento do processo?

Depois, por que motivo tem o procurador-geral entrado várias vezes em contradição, ou sido, no mínimo, pouco claro? Por que chegou a sugerir que se divulgassem as escutas em que Sócrates participava? Como foi possível ter, até ao momento, indicado nada menos do que três datas diferentes - 18, 19 e 21 de Novembro - para um dos seus despachos mais controversos e justificar a "confusão" com o tempo que esta levou a dactilografar? Será possível compreender que tenha recusado entregar os seus despachos aos deputados por estes conterem extractos das escutas em que Sócrates entra, quando pelo menos um desses despachos, entretanto divulgado pela imprensa, não cita qualquer escuta? Por que é que deu a entender que a sua decisão de não abrir inquérito, ao contrário do sugerido pelo procurador Marques Vidal, era apoiada pelos procuradores que tinha ouvido, quando se sabe que até no Conselho Superior do Ministério Público as opiniões jurídicas se dividem?

A tudo isto acresce ainda um mistério: sete meses depois de o presidente do Supremo Tribunal de Justiça ter dado ordem para destruir as escutas em que José Sócrates foi interceptado - e mesmo considerando eu, como cidadão, que um esclarecimento cabal do que se passou requer a divulgação pública dessas escutas -, a verdade é que estas ainda não foram destruídas.

A cadeira de procurador-geral parece ser um lugar maldito, que consome quem nela se senta, até porque quanto mais controversos são os casos, mais impossível é (passe o pleonasmo) substituir quem a ocupa. Pinto Monteiro parecia reunir todas as condições para ser um bom procurador-geral, mas está a contribuir para uma ainda maior desconfiança dos cidadãos no sistema de Justiça e de investigação criminal.

Não vejo, pois, hipótese de restabelecer um mínimo de confiança sem assumir que todos os documentos relativos a este processo, por mais controversos que sejam, são rapidamente colocados à disposição do Parlamento e da opinião pública. Uma controvérsia baseada em documentos é melhor do que uma gritaria alimentada por suposições. Jornalista

 

Republicação das crónicas da edição do Público de 5.Março.2010, a qual teve distribuição gratuita.

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