A síndrome do taxista
"A tutela prepara-se ainda para aumentar de cinco para oito horas diárias o tempo de aulas que cada professor pode dar [...]"8 horas diárias? Ou o artigo está errado ou a ministra passou-se. Isto daria 40 horas semanais, mais 5 do que a função pública.
Não é indicado quem forneceu tal informação. Foi o ME? Foi comentário de fonte sindical? O meu palpite é que poderá constar das intenções ministeriais mas terá sido resultado de conversa sindical. Isso explicaria a falta de nexo da ideia bem como se enquadraria numa estratégia de provocar exaltação na classe docente. O que parece estar a ser conseguido, avaliando os comentários dos leitores dessa notícia do Público.
Seja como for, tenho reparado que este tipo de notícia bombástica, passível de enorme reacção de descontentamento, tem sido publicada com regularidade aos sábados. Haverá alguma justificação que não inclua a desonestidade política? Seja a respectiva fonte o ME ou um sindicato, uma coisa é certa, a escolha do dia de publicação não é inocente.
No entanto não me surpreenderia que esta ideia das 8 horas diárias se viesse a confirmar como mais do que um boato. Estaria sem dúvida enquadrada na linha de actuação recente do ME. Então e tempo para preparar aulas e para fazer e corrigir testes? E tempo para as inúmeras reuniões que a burocracia do ME estabeleceu?
Entre as reuniões a que o ME obriga e as que decorrem da necessidade de concretizar as suas políticas, existem estas:
- reuniões de conselho turma (1 por período, em média);
- reuniões de avaliação (1 no fim de cada período);
- reuniões de departamento (1x por mês);
- reuniões de directores de turma (2x por período);
- reuniões de conselho de turma de cursos profissionais (1x por semana para os professores destas turmas);
- reuniões de estudo acompanhado e área de projecto (1x por período para os professores envolvidos);
- reuniões de grupos de professores que leccionam o mesmo nível lectivo (1x por período, pelo menos).
Tenho notado que a maior parte dos comentários têm caracter de discordância relativamente a esta notícia. Esporadicamente surgem no entanto alguns comentários a favor desta medida, bem como das outras que o ME tem colocado na ordem do dia. Estes podem ser classificados como pertencentes à "Síndrome do Taxista", no sentido de eu estou certo os outros estão sempre errados; ou a culpa é sempre dos outros; ou os outros são privilegiados e eu sou um desgraçado que me farto de trabalhar.
Um exemplo. Há lá um (ou uma!) tal que assinou por ROLF, de Setúbal, que escreveu:
" Está errado...o excesso de férias.Não sabemos quantas horas por semana trabalha o(a) sr.(a) ROLF de Setúbal. Serão 40 horas semanais? Certamente que não, se for da função pública. Idem se trabalhar na privada. Na sua magnânime ignorância, a pessoa em causa não é capaz de distinguir horas de trabalho com horas lectivas. (Precisará de voltar à escola?)
Por ROLF - Setúbal
E tem toda a razão. Por uma vez a equidade exige-se. Todos somos necessários ao País, porque haveremos de ter regalias diferenciadas? Salvo casos muito excepcionais, sempre fui contra estes privilégios das férias dos professores. Se eu trabalho e tenho 22 dias de férias, porque é que há-de haver tantos dias para estes snrs? Somem tudo e vejam os dias de papo para o ar... "
Deste género de comentários identifica-se com facilidade o padrão da referida síndrome. "Eu farto-me de trabalhar e os outros não fazem nada". Conheço várias pessoas assim e estas, quando as observo com atenção, vejo que não são afinal o modelo que defendem para os outros. Como a generalidade da população, fazem uma pausa para café a meio da manhã e outra a meio da tarde - menos uma hora de trabalho. Lêem e reencaminham uns tantos mails não relacionados com trabalho e não prescidem duma leitura dos seus jornais online e dos seus blogs de eleição - menos outra hora de trabalho. Entram às 9 da manhã e saem algures entre as 18 e as 20h e, sem capacidade de autocrítica, afirmam que passam tempo de mais na empresa. O que não deixa de ser verdade, apesar de não corresponder ao sentido original da sua lamentação.
Estas pessoas constituem uma massa crítica manipulada pela propaganda política. Exteriorizam a sua frustração perante as expectativas não conseguidas culpando o "outro", como por exemplo uma classe profissional, pela sua incapacidade organizativa. Onde há frustração há terreno para a demagogia e a classe política tem, ao longo das últimas décadas, feito uso desta estratégia baixo-ventre. Quem tiver memória certamente se recordará que os nossos diversos governos já colocaram os médicos contra a população, os juizes contra a população, os polícias contra a população, os enfermeiros contra a população, os professores contra a população, os militares contra a população, os profissionais liberais contra a população, os funcionários públicos contra a população, etc, etc.
É curioso notar que os atingidos por esta estratégia queixam-se de falta de solidariedade por parte da população mas depois de cessado o fogo sob a sua classe profissional passam a fazer parte da população que se insurge contra a classe profissional a ser atacada de seguida.
Estas são afirmações algo generalistas e, potencialmente injustas. Mas há que reconhecer um padrão na forma de governação e que consiste, como referido, em apresentar um conjunto de características duma profissão, apresentá-las como privilégios e incentivar a indignação. O que resulta em cheio numa população que pouco lê, não procura informar-se e contenta-se com a opinião construída em vez de formular a sua própria opinião.
Disto isto, fosse eu professor, faria duas coisas:
- Em primeiro lugar procurava encontrar forma de fazer com que os sindicatos não me representassem. Acho inacreditável que uma estrutura não eleita possa representar a classe docente. Além disso, fico sempre com a nítida sensação de que a sua actuação tem mais preocupação com os seus interesses corporativos do que com as questões educativas.
- Em segundo lugar, faria única e exclusivamente o horário de trabalho. Se o ME pretendesse que este coincidisse com o período de permanência na escola, tudo bem, aí passaria as minhas 35 horas semanais, tal como a restante função pública. Se não fosse suficiente para corrigir fazer e testes, não os faria. Se não fosse suficiente para a realização dos exames, paciência.
Agora seguramente que não andava a levar cacetada em cima e lastimando-me mas ainda assim a esforçar-me para que a qualidade do ensino não baixasse. Quando finalmente desse bronca, haveria que perguntar aos nossos políticos se as suas orientações fizeram sentido.
Apesar de todas essas reuniões, de todo o trabalho de preparar aulas e corrigir testes, os professores são priviligiados se compararmos com os restantes trabalhadores.
E não tentem tapar o sol com a peneira que gozam de muito mais férias que os restantes trabalhadores. Nas férias e depois das reuniões de avaliação e das matrículas, a maioria não põe os pés nas escolas. A não ser que estejam a fazer horários e esses são uma minoria no universo de professores de uma escola.
Depois basta estarem contactáveis que se for preciso alguma coisa alguém liga para se apresentarem.
Pode usar todos os argumentos que lhe vierem à verborreia, mas sei bem do que lhe falo uma vez que sou casado com uma professora do ensino público há mais de 20 anos.
E acrescento ainda que a minha cunhada é professora num colégio privado, pois não conseguiu lugar no ensino público, e aí a realidade não é essa.
E ainda lhe digo mais: trabalho para o Ministério das Finanças e só tenho direito às férias legais e só essas gozo, apesar de todos os dias fazer mais 2/3 horas sem que ganhe mais por isso.
Com mais ou menos verborreia e demagogia tabelar os verdeiros horários e férias dos professores é uma luta que deve ser ganha pelo Ministério da Educação.
Não me venha também corporativimos alarves. Se conhece tão bem a realidade do ensino e dos professores tenha a coragem de por os pontos nos is e não ser sectário.
O cavalheiro tem então um horário semanal de 35 horas mas defende para os professores um horário de 40 horas lectivas. Será ainda necessário acrescentar que horas lectivas não coincidem com horas laborais?
Enumerei reuniões e abordei o trabalho extra lectivo para mostrar como é ridícula a ideia de colocar um professor a leccionar 8 horas por dia, uma vez que há uma considerável carga burocrática a cumprir, além do trabalho extra à sala de aula e inerente à actividade docente.
Se o cavalheiro ler com atenção o meu texto, o que sinceramente não me parece ter acontecido, verá que este incide sobre este assunto, sendo omisso em relação a essa questão das interrupções lectivas.
Poderia alinhar no seu lamento e dizer que por exemplo esse famoso direito à greve é coisa que realmente não conheço, por trabalhar no sector privado. Ou que as suas 35 horas semanais mais as 2/3 horas extra que diariamente diz fazer não constituem esforço maior do que aquele que a minha profissão exige. Ou que a sua ADSE é (ainda) em muito superior à parca segurança social a que tenho direito. Ou que os meus 22 dias úteis de férias são certamente menos do que aqueles a que tem direito. Ou que a essas férias ainda acresce as pontes que o governo lhe dá. Poderia, enfim, dizer que o cavalheiro é um privilegiado funcionário público. Mas isso, sim, seria demagogia e verbosidade inútil.
O que importa aqui é realçar que o ME tem uma perspectiva unicamente economicista da educação, pouco se importando se os alunos estão ou não a ser bem formados. E antes que diga que isto é um disparate, certamente que saberá da carga burocrática que consiste em reprovar um aluno; da avaliação apenas no final de cada ciclo; da excessiva carga horária dos alunos; das permanentes mudanças nas políticas da educação; do facto dos alunos não reprovarem por faltas. Afinal de contas, afirma-se um bom conhecedor da Educação.
Permita que lhe coloque uma questão: se o nível de formação dos professores não se alterou para pior nos últimos anos, antes pelo contrário, como explica que as notas dos alunos tenham em média baixado tanto nas últimas décadas? Estará de alguma forma relacionado com o permanente laboratório experimental que tem sido a Educação em Portugal durante os últimos 20 anos?
Estas, sim, são as coisas com que nos devemos preocupar.