«Verdade ou propaganda? O caso dos concursos públicos
José Manuel Fernandes - 2009-01-08
De acordo com a actual legislação, a estabelecida pelo Decreto-Lei 18/2008, que entrou em vigor há menos de seis meses, a maior parte, senão a totalidade, das contratações públicas que deixarão de estar sujeitas a concurso em nome da "celeridade da decisão" na tomada de medidas contra a crise poderia ser decidida em prazos que variam entre os nove e os 20 dias. Esse tremendo progresso, só possível devido à utilização da Internet, foi de resto apresentado como um dos grandes saltos em frente dessa legislação, aprovada pelo Governo em Janeiro do ano passado. O que era e é verdade.
Neste quadro, e quando a maioria das contratações potencialmente abrangidas pela intenção governamental de isentar de concurso público as contratações abaixo dos 5,15 milhões de euros cai dentro desses prazos, por que motivo se pretende abdicar do concurso público para passar à adjudicação directa?
Por outras palavras: se o Governo encontrou um mecanismo célere para realizar os concursos públicos, que sentido faz invocar uma "celeridade" imposta transitoriamente (dois anos) em nome da eficácia no combate à crise económica?
É certo que o conteúdo concreto e detalhado do documento, que esteve para consulta na Associação Nacional de Municípios, ainda não é conhecido, mas o chamado "ajuste directo" coloca em causa alguns princípios elementares da boa gestão dos dinheiros públicos. Recorrendo a um pequeno livro escrito para explicar o tal Código das Aquisições Públicas que entrou recentemente em vigor, escrito por Luís Valadares Tavares, presidente do INA (Instituto Nacional da Administração), até ao final de 2007, a contratação pública deve obedecer aos princípios da concorrência, da igualdade, da não discriminação, da estabilidade e da publicidade e transparência. Porquê? Porque a concorrência permite baixar o preço a que o Estado faz os seus contratos, porque não se pode discriminar, antes se deve garantir a igualdade de oportunidades a todos os agentes económicos, e porque só um sistema transparente assegura que se consegue combater o cambalacho e a corrupção.
Antes, a morosidade dos concursos públicos e a opacidade da sua concretização não garantiam nem a celeridade, nem que o Estado comprava ao melhor preço, nem que não existiam favorecimentos. Com a entrada em vigor da nova lei pretendia-se que todos esses problemas fossem resolvidos.
Em abono da verdade deve dizer-se que tal lei não foi muito do agrado da maior parte dos serviços públicos, bastando folhear os jornais e o Diário da República dos dias anteriores à sua entrada em vigor para verificar que ocorreu uma enxurrada de concursos só explicável por os seus promotores pretenderem escapar às novas regras. Pior: alguns dos mecanismos previstos para assegurar a transparência dos processos, como a criação de um Observatório e de um interface na Internet facilmente consultável por qualquer cidadão, deviam estar a funcionar a 1 de Janeiro deste ano e ainda não estão.
É neste quadro que deve ser analisado o que se pode ganhar e perder com a suspensão por dois anos da obrigatoriedade de concurso público para adjudicações até 5,15 milhões de euros (mais de um milhão de contos).
Por um lado é discutível que se ganhe celeridade. Ou que poupar nove ou 20 dias em processos destes faça realmente a diferença no combate à crise.
Por outro lado, na balança do que se perde, é necessário considerar não só o risco de aumento desnecessário da despesa pública (por ausência de concorrência), não só o risco de favorecimento das empresas "amigas" (por violação do princípio da igualdade), como ainda a abertura das portas a processos pouco transparentes, discricionários e tanto mais perigosos quanto estamos em ano eleitoral quer para a Assembleia da República, quer para as autarquias locais. A tentação, pelo menos, será grande.
Pior: os que conhecem bem os meandros da administração pública sabem que boa parte, senão a maior parte, dos problemas com a demora dos concursos públicos e, depois, com os desvios ao contratado e o pagamento de "obras a mais" deriva menos do processo concursal e mais da dificuldade em fazer bons cadernos de encargos. Ora, sem concursos, podem também desaparecer os cadernos de encargos, deixando nas mãos dos fornecedores a possibilidade de apresentarem facturas conforme as conveniências de momento. Por exemplo: se o decreto-lei que hoje pode ser aprovado não o prevenir, passa a ser possível encomendar a substituição das janelas de uma escola sem, sequer, saber quantas janelas tem a escola. Tudo dependerá da honestidade do fornecedor e do contratante.
Mesmo podendo este ser um exemplo limite, este tema é suficientemente grave para ser discutido com seriedade. E a seriedade deve começar por reconhecer que ou a lei em vigor estipula prazos irrealistas, ou então há mais desvantagens do que vantagens em suspendê-la, mesmo que só por dois anos e mesmo que só em áreas definidas (mas vagamente definidas, acrescente-se também).»
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