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Valter de Lemos, o darwinista

Carta de leitor, hoje no Público, texto também presente em: De Rerum Natura

A bondosa medida de Valter Lemos
Apelando "ao exercício de cidadania que traduz uma expressão de solidariedade com a sociedade, contribuindo de forma livre e organizada para a solução dos problemas que a afectam", a recente medida do secretário de Estado Valter Lemos, plasmada num projecto de despacho para o recrutamento de professores reformados como voluntários para prestarem serviço nas escolas, em tarefas não remuneradas (ou seja, de borla), traz-me à memória uma expressão de um bom amigo e colega que me dizia, a respeito de situações parecidas, que "favores destes também os espanhóis me fazem mesmo sem me conhecerem de lado nenhum".

E, para que conste, só do referido anexo sobre "áreas de eventual intervenção dos professores voluntários", somadas as sua parcelas, obtém-se um total de 22 áreas: uma espécie de cardápio de restaurante com muitas "estrelas Michelin" para gostos selectivos e clientela refinada. De forma resumida, para que o leitor não desperdice o seu tempo e eu a minha (ainda que santa) paciência, de um emaranhado de articulados legais, subtraio dessas áreas, apenas, meia dúzia, a saber:

(1) "apoio à formação de professores e pessoal não docente" [para quem possa não estar dentro da nomenclatura, "pessoal não docente" reporta-se a funcionários das secretarias e auxiliares de educação educativa (antigos contínuos)];
(2) "planeamento e realização de Acções de Formação para Encarregados de Educação";
(3) "apoio burocrático-administrativo" [ou seja a burocratização de ex-professores elevada ao seu expoente máximo];
(4) "envolvimento em Projectos de melhoria da sociedade local";
(5) "desempenho de funções de tutoria";
(6) "apoio a programas de investigação".

Como cereja em cima do bolo, na volúpia avaliativa que mora na 5 de Outubro, o projecto de despacho determina que a Escola/Agrupamento de Escolas "avalia periodicamente a(s) prestação (ões) do(s) voluntário(s)". A avaliação está mesmo na ordem do dia. Já agora, quem avalia a acção governativa dos governantes com a tutela da Educação? Ou será que a avaliação se destina apenas à arraia miúda?

Segundo Valter Lemos, o leitmotiv desta "bondosa medida" legislativa contempla o pedido de uns tantos docentes reformados que se entediam com a passagem dos dias sem nada para fazer. Se, por hipótese, a solicitação partiu de professoras que pretendem encontrar nas escolas o convívio do chá das cinco das tiazinhas de Cascais, desenganem-se. Espera-vos um destino padrasto com deveres avaliados a pente fino e sem quaisquer direitos em contrapartida. Ora, como diz o povo na sua chã maneira de falar, "fama sem proveito faz mal à barriga e ao peito" .

Com a modéstia de reconhecer não ter ideias próprias, Valter Lemos recorre à analogia entre este voluntariado e aquele outro desempenhado nos hospitais com a abnegação de serviço público inerente. Trata-se de um tiro no pé: o voluntariado hospitalar não pressupõe, ao contrário de áreas da docência aqui implicadas, o exercício de funções do âmbito dos profissionais de saúde. E, muito menos, de apoio à formação de médicos e/ou enfermeiros, como um dever estipulado em letra de forma. Como escreveu Madre Teresa de Calcutá: "O dever é uma coisa muito pessoal; decorre da necessidade de se entrar em acção, e não da necessidade de insistir com os outros para que façam qualquer coisa".
Rui Baptista, Coimbra


O ME tem afirmado que luta por esta ideia de progressão na carreira educativa, em que só os excelentes chegam ao topo. Já aqui se demonstrou repetidamente a falsidade desta falácia (não é a excelência mas sim o custo o que está em jogo) mas fechemos os olhos para em tal acreditarmos por momentos. Supostamente os melhores progredirão mais, assim numa espécie de teoria da evolução, chegando ao topo antes dos outros. Na sua progressão desempenharão cargos com sucessiva maior responsabilidade, contribuindo para a melhoria gradual do ensino. Nesta lógica, faz sentido esta progressão do grau mais baixo para o mais alto:
  1. professor estagiário;
  2. professor;
  3. professor titular;
  4. secretário de estado adjunto e da educação;
  5. secretário de estado da educação;
  6. ministro da educação.
Sim, os três últimos cargos são políticos, enquanto que os três primeiros são de docência. Acontece que foi o ME que criou introduziu o conceito da hierarquia na educação. Veja-se por exemplo as hierarquias (simplificadas) de duas outras áreas:
  • finanças: funcionários do fisco - chefias - director geral - secretários de estado - ministro;
  • saúde: médicos - directores - direcções regionais - secretários de estado - ministro.
Na educação, a cabeça desta cadeia darwiniana seria o supra-sumo em questões educativas. Valter de Lemos, ocupando o pescoço deste ser antropomorfizado, brilharia de excelência, como uma lampadazinha numa gambiarra de Natal quando sobre-alimentada com uns volts a mais.

Mas as pessoas também são aquilo que fazem e olhando para esta proposta de Valter de Lemos interrogo-me se será esta Excelência excelente. Será ou não Valter de Lemos resultado de uma evolução educativa?


PS: faz hoje 150 anos da primeira publicação de «Sobre a origem das espécies através da selecção natural ou a preservação de raças favorecidas na luta pela vida».


1 comments :

  1. João Esteves disse...
     

    Excelente carta ao Público.

    Não há dúvida que a evolução parou à porta da 5 de Outubro.

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