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O ano Mozart e o CCB



2006 é o ano em que decorrem 250 anos sobre o nascimento de Mozart. Um pouco por todo o lado, com especial incidência na Áustria e na Alemanha, o número redondo foi aproveitado como pretexto para programas musicais especiais com obras do génio. Como de resto se vai fazendo com outras datas redondas de outras efemérides.

Mas será mesmo um pouco por todo o lado? Numa certa jangada de pedra, existe um jardim à beira mar plantado que resiste agora e sempre ao invasor cultural, recorrendo à velha arte de não planear atempadamente. Tal é a sua eficácia que poucos são os locais cujas barreiras são transpostas, sendo uma dessas excepções um tal CCB, conhecido por Centro Comercial de Belém.

E é precisamente no próximo dia 5 de Dezembro de 2006, quando faz 215 anos sobre a morte de Mozart, que o CCB encerra a sua temporada comemorativa do nascimento de um dos expoentes máximos da música clássica. A qual, já agora, começou a 4 de Novembro.

Terei notado nos caros leitores um ligeiro franzir do sobreolho, revelador de algumas dúvidas sobre a exactidão das datas e números apresentados? Ou terá sido apenas o meu próprio reflexo no monitor deste computador?

Vejamos o que diz o editorial do CCB:
"A série dedicada a Mozart, nas semanas finais das comemorações dos 250 anos do seu nascimento, inclui a integral das sonatas para piano, executadas por Jorge Moyano e António Rosado, o concerto de encerramento (no dia da morte do compositor) em que Harry Christophers e The Sixteen apresentarão a Grande Missa em Dó menor KV 427 e um inovador ciclo de sessões de ópera em vídeo, animadas por João Maria de Freitas Branco, em que serão discutidas e apresentadas cinco produções históricas de outras tantas óperas mozartianas."

Como?! Então de um compositor que criou mais de 600 obras, indo de pequenas peças a sinfonias, passando por concertos, música de câmara, obras de piano, óperas e música coral, opta-se por um "inovador ciclo de sessões de ópera em vídeo"?! Ah, ok, são "animadas por João Maria de Freitas Branco"...

Bom, mas o programa é mais do que isto, por isso analizemo-lo em maior detalhe.

ccb mozart festa da música
Portanto, para além da exibição de 5 vídeos com óperas de Mozart, há ainda a projecção dum filme intitulado "A Flauta Mágica", obra cinéfila notável mas uma escolha questionável para uma programação musical... Sobre este filme, está escrito no site do CCB:
"Por outro lado, o público português poderá admirar, pela primeira vez, o pano de cena (23,5×13,5) pintado sobre cartão de Marc Chagall para a terceira cena do segundo acto da produção de 1965 da Metropolitan Opera House, em Nova Iorque. A obra faz parte do acervo da Colecção Berardo."


Oookkkkkkaaayyyyyyyyyyyy, assim está bem. Poderemos admirar, pela primeira vez, o pano de cena (23,5×13,5) pintado sobre cartão de Marc Chagall para a terceira cena do segundo acto da produção de 1965 da Metropolitan Opera House, em Nova Iorque. Esta colecção Berardo é mesmo o máximo, até tem cenários e tudo.

Sobram-nos ainda três eventos: os quatro concertos para piano onde desfilarão as 18 sonatas de Mozart, uma coisa entitulada o "Chiaroscuro das Paixões" e uma outra designada por "The Sixteen/The Symphony of Harmony and Invention". Vamos então ver do que se tratam.



O Chiaroscuro
ccb mozart festa da músicaO Chiaroscuro, junção das palavras italianas claro e escuro, dá o nome a este concerto sem que se perceba bem porquê, excepto se for pelo cinzento resultante desta mistura musical com temas de Bach, Brahms, Liszt, Stravinsky, Gershwin, Bernstein, Takemitsu, Lutoslawsky! Ah, é verdade, e de Mozart. Uma verdadeira rapsódia que se serve para um concerto de Mozart, também serviria para qualquer um dos outros oito compositores. Nota a reter: ora aqui está um belo exemplo de como se pode planear um concerto que poderá ser re-utilizado em oito outros ciclos.

Missa Incompleta de Mozart KV 427
ccb mozart festa da músicaA Missa Incompleta de Mozart KV 427, escrita em 1782-3, terá sido um presente de casamento à sua esposa Constância. Estreou a 26 de Outubro de 1783 e a própria Constância foi soprano solista. Nesta data foram apresentadas as partes Kyrie, Gloria, Sanctus, Osanna e Benedictus e no regresso a Viena Mozart esboçou parte do Credo e do Agnus Dei, sem no entanto os terminar. Por esta razão tem esta missa sido adjectivada de incompleta. Há, no entanto, quem não partilhe desta ideia. Philip Wilby e Peter Allan, por exemplo, na sua recente edição Novello, escrevem no prefácio que "[esta partitura incompleta] pode ser explicada pela prática litúrgica nos tempos de Mozart. Não era costume cantar o Agnus Dei numa missa coral com orquestra, nem o credo, excepto aos domingos e dias festivos... Podemos então assumir que Mozart disponibilizou todo o material para a primeira audição desta missa."

Portanto, estamos perante uma boa escolha para um programa musical desta natureza. Já a opção por Caldara e Gluck, se bem que explicáveis, soa a algo forçado, especialmente pelo facto de tantas outras opções musicais existirem na obra deste autor e que não foram nem levemente abordadas neste ciclo do CCB. Parece, antes, que este pequeno coro de 16 elementos e a necessariamente pequena orquestra que os acompanhará (pequena em número, pois de contrário as vozes serão abafadas) vai interpretar o repertório que tem ensaiado.

Os preços para os bilhetes da plateia situam-se entre os 40 e os 50 euros e, francamente, este era o toque que faltava que não ficar com problemas de consciência ao afirmar que além de caro, este festival não vale um corno e que só existiu para cumprir calendário. Mais valia terem guardado o dinheiro para a entretanto cancelada Festa da Música 2007. Sobre os bilhetes deste concerto serem caros, é de notar que por 30 € poderia em Salzburg assistir a um concerto a sério como este:

ccb mozart festa da música
Mozart, porque não nasceste um ano mais tarde?! É que parece que a crise por cá acabou, por decreto, e para o ano já haveria dinheiro para um ciclo a sério.


PS: a título de curiosidade, aqui ficam alguns extractos da Missa Incompleta de Mozart KV 427.